O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou na quinta-feira (5) por mudanças substanciais na responsabilização das plataformas digitais por publicações de usuários. Em linhas gerais, o ministro aumenta a responsabilidade das empresas ao retirar a necessidade de ordem judicial para a derrubada de conteúdos postados.
Pelo voto, a regra geral é que a derrubada da publicação deve ocorrer já na notificação pelo ofendido pelo conteúdo. Porém, em temas sensíveis, como inverdades sobre democracia e as eleições ou que incitem violência contra grupos vulneráveis, o conteúdo deve sair do ar de forma imediata, sem a necessidade de qualquer tipo de notificação.
Após três sessões de leitura do voto, o ministro concluiu que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitucional, portanto, não deve valer mais no ordenamento jurídico brasileiro. O julgamento começou no dia 27 de novembro e discute a validade do dispositivo que trata sobre a responsabilidade dos provedores digitais sobre o que é postado em seus espaços. A discussão é considerada uma das mais importantes pelos ministros da Corte, especialmente após os atos golpistas de 8 de janeiro. Toffoli é o relator de um dos recursos.
Pela lei vigente, as big techs só têm responsabilidade por conteúdos de seus usuários se descumprirem decisão judicial de remoção — como ocorreu com a rede social X, quando foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. Assim, as empresas são mais livres para adotarem suas regras de moderação e não precisam indenizar usuário sem ordem judicial.
O voto de Toffoli muda completamente esse cenário e as plataformas precisam retirar os conteúdos assim que forem comunicadas pelo usuário ofendido, sem necessidade de decisão judicial, sob pena de terem que indenizar os ofendidos. As empresas também deverão estar mais atentas a um rol de assuntos que ensejam remoção imediata do conteúdo, antes mesmo de qualquer notificação. Estão nesse rol publicações que incitem o suicídio e à violência contra as crianças, adolescentes e mulheres. Ainda, aquelas que versem sobre terrorismo e que tragam inverdades sobre a democracia e as eleições.
As empresas digitais também precisarão ficar atentas com os perfis falsos, direitos autorais e os conteúdos impulsionados. Nestes casos também não é preciso notificação para as plataformas terem que indenizar quem sofreu danos.
Serviços de e-mail, serviços de reuniões fechadas por vídeo ou voz e aplicativos de mensagens privadas instantâneas não entram na nova responsabilização proposta por Toffoli.
Em um voto minucioso, Toffoli ainda detalha que os “marketplaces” têm responsabilidade sobre anúncios de produtos de venda proibida ou sem certificação. Traz uma série de obrigações às plataformas como atualizar e manter atualizados os “termos e condições de uso”; criar mecanismos para assegurar a autenticidade das contas; elaborar códigos de conduta; estabelecer regras claras e procedimentos padronizados para a moderação de conteúdos, combater a difusão de desinformação e de notícias, entre outros. Os provedores de aplicações de internet com sede no exterior e atuação no Brasil devem constituir representantes no país — outro problema enfrentado pelo STF em relação à rede social X.
No voto, Toffoli faz apelo aos Poderes Legislativo e Executivo, para que, no prazo de 18 meses, elaborem e implementem política pública destinada ao enfrentamento da violência digital e da desinformação.
Quanto ao conteúdo jornalístico em plataformas, a responsabilização se dará por meio da lei específica (Lei 13.188/ 2015), que dispõe sobre o direito de resposta ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social.
De uma forma geral, o ministro derrubou o artigo 19 do Marco Civil da Internet e, para evitar um vácuo normativo, as plataformas devem seguir o artigo 21 da mesma lei, mas estendendo sua aplicação. O artigo 21 estabelece que as empresas serão responsabilizadas quando forem notificadas e não suspenderem publicações que violem a intimidade por postagens de imagens com cenas de nudez ou atos sexuais.
Durante o julgamento, o ministro Flávio Dino, chegou a expressar que não concorda com a inconstitucionalidade total do artigo 19, mas Toffoli foi incisivo ao dizer que mantê-lo é dar imunidade às empresas. “Resta indubitável não só que as bigs techs exercem autoridade e poder nos ambientes virtuais que mantêm na internet, como também que o fazem com extrema autonomia e discricionariedade e de forma nada transparente”, disse.
Na avaliação de especialistas, o voto de Toffoli entra em detalhes que podem invadir as competências do Congresso para legislar sobre o tema. Pedro Henrique Ramos, fundador e diretor-executivo do Reglab, centro de pesquisas focado em tecnologia e regulação, observa que o posicionamento do magistrado tem inspiração a textos como o projeto de regulamentação das redes sociais, que ficou conhecido como PL das Fake News e está com a tramitação parada. O julgamento dos processos sobre o Marco Civil no STF ocorre justamente após o tema ter travado no Legislativo.
“O voto de Toffoli surpreende pelo grau de detalhe das regras que propõe, inclusive com forte inspiração na legislação europeia e no PL das Fake News. Isso por si só já mostra uma invasão de competências: como uma decisão de interpretação de lei pode ser tão parecida e detalhada como uma proposta legislativa do Congresso?”, questiona.
A advogada Amanda Cascaes, sócia do Salles Nogueira Advogados e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados, entende que o voto de Toffoli avança “perigosamente” na atividade legislativa, “gerando dúvidas sobre uma extrapolação da atividade jurisdicional”. Para Fabiano Carvalho, especialista em transformação digital, o voto, se prevalecer, vai exigir das plataformas “maior vigilância e controle prévio dos conteúdos", o que considera tecnicamente complexo e juridicamente arriscado.
Já a professora do IDP e eleitoralista Marilda Silveira defende que as empresas de tecnologia precisam ser responsabilizadas como curadoras e impulsionadoras e não como intermediárias. Em sua avaliação, o modelo de negócio que dá lucro pela “ciência da recomendação” ou gerenciamento de conteúdo não pode estar protegido por um formato que exige ordem judicial, como estava previsto no artigo 19.
“Esse modelo é danoso para o Estado em geral e especialmente danoso para o processo eleitoral, em que o tempo limitado para decisão do eleitor exige uma eficiência que o controle de conteúdo judicial não consegue assegurar”.
O professor da PUC Minas Volgane Carvalho defende que as plataformas precisam ser responsabilizadas. Para ele, as empresas não podem ficar nessa posição “cômoda” porque elas acabam lavando as mãos para conteúdos e perfis anônimos que incentivam “coisas absurdas”, como desinformação sobre sistema eletrônico de votação, estímulo ao estupro, pedofilia, apologia ao uso de drogas, por exemplo.
Advogado que representa o X neste processo, André Giacchetta, sócio do Pinheiro Neto Advogados, afirma que o voto de Toffoli muda totalmente a regra de responsabilidade civil das plataformas, criando um risco concreto à continuidade das atividades das plataformas.
“A proposta de nova regulação apresentada não se mostra equilibrada, ao transferir às plataformas o risco de decidir sobre o que é ou não ilícito, especialmente em casos de discursos públicos e violação da intimidade e privacidade”, complementa.
Procuradas, as empresas Meta e Google, que são parte do processo, preferiram não se pronunciar.